O Sapo Cultural

Sapo Cultural: substantivo masculino 1) Bronca ou sermão de conteúdo ou natureza cultural; 2) Discurso desnecessáriamente longo (e com freqüência desagradável) que tem como objetivo aumentar a cultura, mesmo a contragosto, dos ouvintes.

12 setembro 2006

Gotham Adventures

Uma aula de como escrever revistinhas de herói


Para começo de conversa, não confundam a revista Gotham Adventures, já referida, com o título regular da DC Comics, Gotham Knights. Enquanto a G.K. é uma série mensal publicada até hoje – e já está chegando ao número cem -, a “Gotham Adventures” foi uma publicação de sessenta números, e não é de forma alguma relacionada à cronologia da DC. De fato, a série é baseada no desenho animado da Warner, “Batman, The Animated Series”, compartilhando até mesmo o time criativo responsável por essa animação de tanto sucesso.
Tudo isso dito, vamos ao essencial: Gotham Adventures é ótimo. É, exatamente, ótimo. Maravilhoso. Muito bom mesmo. Em resumo, uma experiência fantástica para qualquer fã do Batman.

Primeiro, vale dizer que as influências da série animada estão lá, é claro. O desenho é uma reprodução da animação, com seus traços simples e marcantes; alguns leitores podem estranhar, a princípio, toda essa simplicidade, essa tendência ao infantil – mas não se enganem. Os roteiros da série, embora nunca possam ser definidos como inapropriados para crianças, carregam conteúdo que agradam mesmo os mais velhos e exigentes fãs. Aliás, a força de Gotham Adventures está no roteiro: suas tramas são interessantes e surpreendentemente inteligentes, e, mais importante, todas as personagens do universo Batman são retratadas magistralmente – em especial o nosso grande herói. Além disso, a simplicidade de traço, uma variação de estilo, é complementada por excelentes construções de cena, um visual quase cinematográfico, e nenhum prejuízo em termos de compreensão. De fato, a arte discreta nos mantém focados na história, e não deve ser subestimada; compõe belos momentos e quadros, que não são de menos valor simplesmente por seu minimalismo. Aliás, agradam muito mais do os inúmeros artistas que insistem em páginas poluídas e pouco claras que vemos por aí.

Não é que os sessenta números sejam absolutamente perfeitos, mas é quase isso. Procure por drama, humor, ação, bons diálogos... está tudo lá. E isso, vale dizer, em uma revistinha que abraça completamente a idéia da Bat-família, já que grande parte das histórias envolve a participação de Asa Nturna, Batgirl, Robin e, é claro, um impagável e muito bem caracterizado Alfred. No entanto, aquilo que costuma estragar a maioria das revistas – a interação forçada do sombrio Batman com pirralhos engraçadinhos – aqui funciona às mil maravilhas. A presença da molecada é o que dá espaço para mostrar uma das grandes coisas a respeito do Batman: sua humanidade em conflito com a dureza a que ele se obriga, tudo em nome da “cruzada”. Assim, fica muitas vezes explícito o Batman que é incapaz de lidar com sentimentos normais e humanos – ele costuma colocar-se acima disso -, enquanto demonstra a qualidade que o torna o mais cativante dos heróis: a sua infinita empatia e solidariedade pelo sofrimento humano em geral.
Análises psicológicas à parte, “Gotham Adventures” demonstra com maestria que os companheiros infanto-juvenis de Batman podem sim ter seu lugar, sem descaracterizar o Cavaleiro das Trevas. Há inclusive histórias solo destes membros da Bat-família, e elas não decepcionam. De todos, porém, quem mais brilha é o quase esquecido Asa Noturna, aqui novamente sob a luz, e mostrado sob uma visão coerente e agradável. Robin e Batgirl cumprem bem o seu papel, e o menino prodígio é o responsável pelos comentários engraçadinhos e tiradas espertinhas – mas tudo dentro da razoabilidade, e jamais apelando para “santa chatísse, Batman!” – embora exista uma referência bastante engraçada no número 11, em uma frase de Nightwing.

Sim, é claro que há momentos menos brilhantes e que podem tender ao absurdo, mas são raros. E, quase sempre, consertados alguns quadrinhos à frente com uma solução muito boa e uma conclusão inteligente. Gotham Adventures é ainda mais interessante por trazer elementos que as revistinhas regulares parecem encarar apenas de duas formas: ou descartando completamente, porque interferem com a visão sombria do Cavaleiro das Trevas, ou descritos de forma infantil e ridícula, incoerente e insatisfatória. Assim é a Bat-família na maioria dos títulos, transitando entre o inútil e o irritante, montes de personagens deslocadas; ou, se não, é o próprio Batman quem é mostrado de forma diferente, alegre e bem-resolvido, totalmente fora de sua caracterização mais popular e bem feita. E aí mora um dos grandes méritos desta série, que foi capaz de combinar muito bem o Batman sombrio e obcecado ao grupo de seguidores que têm cérebro e que de fato acrescentam algo ao serviço de vigilante de Bruce Wayne.

Não podemos deixar de citar os vilões, maravilhosamente retratados, não apenas pelas felizes interpretações de suas características bizarras – e sempre tendendo à faceta mais humana -, mas também por colocá-los em situações plausíveis e em consonância às suas habilidades. Mais do que isso, Gotham Adventures enfoca, em várias edições, situações que não envolvem os clássicos oponentes do Batman, e sim outros problemas igualmente interessantes e relevantes, que não necessariamente envolvem os loucos de Arkham. Mais uma lição para os títulos regulares: nem sempre os grandes vilões precisam estar por trás de tudo...

Enfim, “Gotham Adventures” é uma experiência cativante, e tem um último e raro mérito: consegue manter a alta qualidade por sessenta números, alternando momentos apenas bons com números muito interessantes, mas nunca caindo na mediocridade. Existe alguma continuidade entre as revistas, mas a maioria, senão todas, podem ser lidas separadamente. Cada número é uma leitura válida, alguns mais do que outros, é lógico. Mas, no geral, “Gotham Adventures” merece aplausos, e deveria ser um exemplo de como tratar com respeito e qualidade os heróis de quadrinhos.

Alguns números memoráveis (se você não quer ou não pode ler as sessenta edições):

- Os números 1 e 60, estrelando o Coringa, histórias geniais sobre a interação do Batman com seu arquiinimigo. A primeira história, “With a price on his head” (algo como “Com um preço por sua cabeça”), mostra uma situação inusitada, onde um milionário que teve seu filho assassinado pelo Coringa propõe na televisão um preço pela cabeça do palhaço. Isso, é claro, coloca Batman na curiosa posição de guardião do Coringa... Já a número sessenta, a despedida desta série, é um conto muito interessante no qual o Coringa (referência à “Piada Mortal”) seqüestra o Comissário Gordon para torturá-lo. Uma boa história onde o Batman se vê encarando o conceito de família e culpa, além de termos um curioso e melancólico discurso do Coringa sobre sua relação com o Batman. É intitulada “Leaves” (aproximadamente “Deixar”, aqui no sentido de superar).

- Duas-Caras brilha nos números 2 e 12 em histórias com argumentos originais e curiosos. Na número 2, vemos Harvey Dent sabotando a entrega de um prêmio de loteria, e por razões muito... pessoais. “Lucky Day” (Dia de sorte) é o título desta boa revista. Já a número 12, “Never an Option” (Nunca uma opção), mostra o vilão agindo como um justiceiro, e a explicação também é uma revelação curiosa. Porém, mais interessante é como este número discute a tendência autodestrutiva de Duas-Caras, e como Batman encara este vilão que, no passado, foi um grande amigo.
- A Mulher-Gato aparece relativamente pouco nesta série, mas esteja certo de que suas aparições geram sempre ótimas histórias. A edição número 4, “Claws” (Garras), é basicamente centrada no ponto de vista de Selina Kyle, mostrando com muito primor o conflito que faz da Mulher-Gato uma personagem difícil de ser classificada como vilã, mas certamente demonstra que ela não é uma heroína... Além, é claro, de nos mostrar a difícil relação que existe entre Batman e Mulher-Gato, sempre romântica e tensa. Este último tema retorna na edição 50, uma bela história, agora sob o ponto de vista do Batman, a respeito das dificuldades que o próprio Cavaleiro das Trevas tem para lidar com seus sentimentos em relação à Selina Kyle. “Second Timers” (acho que é meio intraduzível, aceito sugestões... “Segundas Chances” não é um mau título, penso eu) é o nome deste conto romântico, uma boa visão sobre o personagem do Batman e sua rigidez moral. Além dos números já citados, Mulher-Gato também aparece no 24, “Missed Conections” (Conexões Perdidas), uma das mais hilárias histórias, e a única, talvez, onde o Batman comete um erro de interpretação.

- Há belas histórias que não são estreladas por vilões, como já foi dito. A número 6, “Last Chance” (Última Chance), é a história do assassinato de Boston Brand , trapezista e amigo de Dick Grayson. No entanto, a trama se passa sob o ponto de vista de Brand, mesmo quando ele já está morto... [Nota do Editor:Boston Brand é o herói/fantasma conhecido como Desafiador
("Deadman", no original)] Há também “A Tale of Joe”, número 41, uma divertida história sobre um avoado rapaz chamado Joe, cujo caminho cruza com o de Batman um bom número de vezes. Aqui vemos como, para o Cavaleiro das Trevas, nenhum problema é pequeno demais, e nenhuma vida pode ser ignorada. Além disso, uma menção honrosa deve ser feita à excelente e engraçada número 16, “Captive Audience” (Audiência Cativa), onde vemos Alfred lidar com seu próprio seqüestro.

- Também muito interessantes são os números 33, 44, e 48. Todas estas histórias são uma investigação sobre as motivações de Batman, uma breve olhada na psique e sentimentos do herói que, afinal, é também um homem. A revista 33, sugestivamente intitulada “World Without Batman” (Mundo sem Batman), é uma viagem sobrenatural que o herói faz a um mundo no qual seus pais não foram assassinados, e ele não se tornou Batman. Será que você pode imaginar o que aconteceu? A número 44, por sua vez, desenvolve a trama de uma perseguição de Batman ao Duas-Caras. A originalidade está no fato de que, no começo da história, Batman abandona um Nightwing à beira da morte, deixando-o aos cuidados de um apavorado Robin. O resto da revista examina a culpa do herói, e como seus companheiros encaram a escolha de seu mentor. O título deste número é “Choices” (Escolhas). O número 48, por sua vez, é talvez a mais sentimental de todas as histórias contadas em “Gotham Adventures”. Chamada “Actions” (Ações), vemos que nosso herói durão também tem formas de demonstrar sentimentos – e é cheio deles...

Muitas são as histórias que merecem ser lidas, e há edições muito interessantes sobre o Charada, o Cara de Barro, ou até sobre o Crocodilo. Para não falar nas histórias estreladas apenas por Robin, ou Batgirl, ou mesmo Nightwing. Todos eles têm seu momento para brilhar, em tramas realmente boas. Enfim, há opções para todos os gostos, e os sessenta números cobrem mais possibilidades do que se imagina. Pois assim é a série “Gotham Adventures”: uma excelente descoberta.




[Resenha gentilmente escrita por Mestra]